Setubal, 16 outubro 2006
É isto a liberdade? Por baixo de mim, os jardins descem molemente para a cidade e em cada jardim ergue-se uma casa. Vejo o mar, pesado, imóvel, vejo Bouville. Está um dia bonito.
Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver; todas as que exprimentei cederam, e já não posso imaginar outras. Estou ainda bastante novo, tenho forças suficientes para recomeçar. Mas recomeçar o quê? Só agora percebo até que ponto, no auge dos meus terrores, das minhas náuseas, tinha contado com Anny para me salvar. O meu passado morreu, morreu o Sr. de Rollebon; Anny, se voltou, foi só para me tirar todas as esperanças. Estou sozinho nesta rua branca, bordada por jardins. Só e livre, mas esta liberdade parece-se um pouco com a morte.
Hoje chega ao fim a minha vida. Amanhã terei abandonado esta cidade, que se estende a meus pés e onde vivi tanto tempo. Bouville não será então mais do que um nome, atarracado, burguês, bem francês, um nome na minha memória(...) .
A minha vida está toda atrás de mim. Vejo-a inteira, vejo-lhe a forma e os lentos movimentos que me trouxeram até aqui. Pouco há a dizer dela : é uma partida perdida, eis tudo(...)
Ao mesmo tempo aprendi que se perde sempre. Só os safados é que julgam ganhar. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente, suavemente, como aquelas árvores, como uma poça de água, como o assento vermelho do eléctrico.
A Náusea concede-me uma trégua curta . Mas sei que voltará: é o meu estado normal.
Jean Paul Sartre, " A Náusea"
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